
Bundesliga ousa ao apostar em retorno precoce
Após dois meses de paralisação por conta da pandemia do Covid-19, a Bundesliga recebeu sinal verde do governo alemão para finalizar sua temporada nos próximos 45 dias. Até o final de junho os clubes irão se submeter a uma verdadeira maratona de confinamento, testes e partidas para decidir a temporada 2019-2020 dentro de campo. O retorno, apesar de autorizado pelos órgãos competentes, envolve a assunção do risco por parte das entidades responsáveis pelo futebol na Alemanha e uma decisão contestável do ponto de vista social e esportivo.
Para preparar não apenas os clubes, mas todos os envolvidos nas partidas de maneira correta, a DFL organizou uma Força Tarefa guiada por um Plano de Ação de 52 páginas repleto de diretrizes para o distanciamento, higiene e mudanças práticas para limitar o contato físico das pessoas. Foram realizados mais de 1.700 testes de Covid-19 e até o final da Bundesliga esse número deve chegar a 25 mil. Os testes são financiados pela própria organização da liga e serão realizados duas vezes por semana em todos os presentes nos estádios durante as partidas.
A DFL também determinou que os jogadores limitem seu contato com vizinhos e família o máximo possível, e recomenda que anotem em um papel e deixem registrado no clube todas as pessoas com quem tiverem contato. Os atletas também estão proibidos de receberem visitas em suas casas, além de utilizar o transporte público – como é o caso de Neven Subotic, ex-Dortmund/atual Union Berlin, que não possui carro. Angela Merkel sugeriu uma quarentena mandatória de 14 dias para todos os times, porém a liga reduziu o confinamento para uma semana.

Uma preocupação latente é a situação em que os atletas retornam após dois meses de paralisação, o dobro de intervalo que tem a pausa de inverno da liga, por exemplo, correspondendo praticamente a uma nova pré-temporada, porém sem treinos. Gradualmente os clubes voltaram a treinar em abril, respeitando o distanciamento social e cumprindo uma série de restrições.
O Bayern de Munique tem treinado em sub-grupos de três a quatro jogadores; os goleiros só tem contato com os jogadores de linha nos treinos de finalização. No RB Leipzig, cada jogador ganhou uma suíte exclusiva no moderno centro de treinamento de Cottaweg, enquanto o Bayer Leverkusen está usando personagens de papelão para completar o time e simular situações de jogo. Já o Hoffenheim preferiu restringir ainda mais o contato entre seus jogadores e tem focado em sua saúde mental, fornecendo um tablet para cada um e dando a maior parte dos treinos táticos por videoconferência, com vídeos curtos e pequenas provas para o elenco.
Na maioria dos clubes os atletas têm recebidos refeições prontas para serem levadas para casa. A presença nos vestiários também está restrita a um máximo de duas ou três pessoas ao mesmo tempo. O novo normal tem sido motivo de críticas e nem todos os clubes e jogadores tem manifestado apoio à volta do futebol na Alemanha.
Florian Kohfeldt, técnico do Werder Bremen, criticou o retorno da liga em tão pouco tempo – mas por um motivo específico: em Bremen o Estado manteve as restrições por mais tempo que nas outras regiões, impedindo o clube de retornar aos treinos, mesmo em grupos menores. O time, que luta contra o rebaixamento, começa em desvantagem a reta final da Bundesliga? Parece evidente que é o caso. Adi Hütter, técnico do Frankfurt, também afirmou que, diante da decisão do retorno, todos os clubes precisariam de “pelo menos de 10 a 14 dias” de treinos regulares para garantir um retorno seguro, principalmente do ponto de vista do preparo físico dos jogadores.

A preocupação com a parte física dos atletas merece atenção especial. Se durante a temporada regular, a reta final dos campeonatos reserva lesões amargas e problemas físicos decorrentes da sequência de partidas, o que esperar de uma maratona de 45 dias após dois meses de paralisação? Haja elenco e haja sabedoria dos treinadores e comissão técnica para lidar com a fadiga de seus principais destaques.
O retorno é bizarro em muitos sentidos, mas as diretrizes para o decorrer das partidas em si conseguem ir além do compreensível. O ritual das partidas começará 7 horas antes do pontapé inicial, com a chegada dos funcionários do clube para preparar o estádio. Duas horas depois, é a vez das 90 pessoas envolvidas na operação do VAR e transmissões por rádio e televisão. Durante essas primeiras horas, uma equipe de segurança com 32 integrantes irá assegurar que mais ninguém tenha acesso ao local da partida. Apenas 3 horas antes das partidas será permitida a chegada de policiais, paramédicos, bombeiros e os primeiros membros do staff dos clubes. A essa altura, são esperadas 226 pessoas presentes no estádio.
Os times são esperados no estádio 90 minutos antes do horário marcado para o início da partida e devem chegar em dois ou três ônibus cada, mantendo a regra do distanciamento social, evitando também que cheguem ao mesmo tempo. Para os jogos em casa, a DFL recomenda e encoraja que os atletas dirijam seus próprios carros para o estádio quando possível, mas não podem dar carona para ninguém. Todos devem estar de máscaras. Muita coisa? Calma, tem mais.

Ao chegarem nos estádios, jogadores não podem tocar nos botões de elevadores, por exemplo, devendo usar os cotovelos. A presença nos vestiários também fica restrita, devendo os elencos se dividirem em grupos para a troca de roupa. A DFL recomenda que sejam utilizados o maior número de salas disponíveis nos estádios, para que o distanciamento seja máximo. Clubes como Schalke, cujo o estádio tem vestiários pequenos, são obrigados a preparar novos ambientes para os jogadores. O processo de troca de uniformes está previsto para levar de 30 a 40 minutos com as novas regras.
Todas as bolas e materiais da partida serão desinfectados antes e durante os jogos. Será permitida a presença de apenas quatro gandulas por jogo, devendo cada um ter no mínimo 16 anos de idade. Quando todos saem para o campo, uma equipe imediatemente entra nas salas e vestiários utilizados para fazer a limpeza dos locais. O cerimonial pré-jogo foi reformulado para que o contato seja mínimo: sem mascotes, sem apertos de mão entre as equipes e sem a tradicional foto posada.
Os reservas devem ficar sentados com um ou dois assentos de distância. Se o espaço for pequeno na área dos reservas, os clubes devem usar parte da arquibancada para acomodar seu elenco e staff. Para a hidratação durante as partidas, os jogadores só poderão utilizar garrafas de água descartáveis, ao contrário dos squeezes reutilizáveis normalmente adotados.

O Ministério do Trabalho da Alemanha sugeriu que os atletas utilizassem máscaras durante as partidas, mas a Federação julgou a ideia pouco prática pois dificultaria a respiração. O mesmo se aplica para árbitros e auxiliares. Os treinadores, porém, devem utilizar máscaras – mas estão autorizados a retirá-la por alguns segundos para se comunicar com seu time.
Após as partidas, a DFL recomenda que os jogadores tomem banho apenas em casa ou no hotel da equipe. Eles também devem lavar o próprio uniforme e chuteiras. Não haverá zona mista para entrevistas e as entrevistas coletivas serão todas feitas por videoconferência. Cerca de 90 minutos depois do apito final, começa o plano de desmontagem e saída das últimas pessoas presentes no estádio.
Como será o futebol após a Covid-19 não sabemos, mas a Bundesliga dá sinais de que exigirá muito mais do que algumas novas regras. Será preciso reeducar jogadores, treinadores e funcionários do clube para que toda essa operação tenha êxito. Além disso, fica claro que apesar da tentativa, o medo de uma desgraça ainda maior claramente persegue os organizadores, que abraçam um risco iminente de contaminação em massa caso um protocolo sequer não seja cumprido.
Minha opinião é de que o retorno é precoce, desmedido e leva em conta suposições pouco prováveis. Parte-se do pressuposto que tudo isso irá reduzir o risco de contágio, o que em parte é verdade, mas parecem ter se esquecido que todo o distanciamento acaba a partir do momento que o juiz apita ou na primeira cobrança de escanteio com bagunça dentro da área. Podem ser alteradas muitas regras, mas o futebol ainda é o mesmo e ninguém vai reaprender a jogá-lo em duas semanas.